sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Meu coração

Meu coração é um cão sentado sobre um Enkan. Ele dorme, rosna e respira com a língua de fora diante da universalidade da compreensão do mundo, das pessoas e da fé. Inocente de si, ele dorme sobre o Enkan, com a cabeça entre as patas, olhando amoroso seu dono. Meu coração é um cervo não-sabidamente imponente, olhando o horizonte sobre o Torii. Ele não sabe, mas habita entre os dois mundos e trota desavisado entre os imortais, entre os desiguais. Ele não enxerga diferença entre os homens e os deuses. E somente busca, não sabendo o que. Meu coração é uma formiga que caminha sobre as nove pontas da Estrela que simboliza a perfeição, na Fé Bahá-í. Indo por um caminho sem fim, sem contar quantas voltas dá, na absurda certeza que chegará em algum lugar, assim. Meu coração é um menininho Down, deitado de barriga sobre o Darmacakra, que ri juntando lápis de cor, sem no entanto pintar ou desenhar nada. E sério, os junta e separa. Os entrega pra mim e me sorri. E sem seguida pede de volta. Ele me ensina toda a sabedoria que tem, e é infinitamente superior à minha. Meu coração é um corvo pousado sobre a asa esquerda quebrada de um Ferohar de cimento, numa praça vazia. Ele grasna para o céu azul, em busca do seu par, sem saber se existe nem onde está. Mas ele não se questiona sobre isso. Ele grasna. Ele não sabe se é vivo ou morto, se é ou nunca será. Mas ele o chama. Meu coração é uma mulher histerectomizada, nua, sem pêlos, deitada sobre uma cama com estampas de Pentagrama. Ela fuma um cigarro, e seu sexo tem cheiro de sândalo. Ela está só e com todas as pessoas do mundo ao mesmo tempo. Meu coração é um preto velho fumando cachimbo sentado sobre um um tronco cortado, onde está entalhado o Valknut. Ele pensa na mãe África e nos seus antepassados e tem uma sabedoria diletante, em que a arte é uma cultura estereotipada num canto de rua sujo e mal-frequentado. E ele a ama e nem sabe o que é um Valknut... Meu coração é o capitão de um barco pesqueiro, em busca da Ilha Desconhecida, e dentro dele há plantações e árvores de raízes e troncos frondosos, onde um homem dorme abraçado com sua mulher à luz do luar. Ele navega a olhar o infinito, sabendo que na hora que tiver de ser, a Ilha Desconhecida se fará conhecer. E ele norteia sua navegação com um timão que ele não sabe ser uma Roda Dharmica. Meu coração é uma borboleta pousada sobre uma Flor de Lótus, bebendo o néctar da energia emitida por ela, que ilumina a vida, direciona o mundo e transcede o tempo. Meu coração é o Quasímodo a hastear a bandeira dos Sikhs, e a homenagear a perfeição do Khanda. Inexato, imperfeito, inacabado, intocado. A adorar a perfeição que busca. Meu coração é a tatuagem do Aum sobre o meu seio. Divinamente criado, perfeitamente imperfeito. Meu coração é uma gata a rolar o Yin-Yang pela sala, a correr atrás dele inocentemente, como um novelo de lã. Uma gata preta e peluda que ronrona entre as pernas, os braços e sobre as costas do seu dono. Ela o conquista e por ele é conquistada. Meu coração é uma lagarta colorida que arde ao toque na pele, tão incipiente de que o faz, porque se defende. É o inimigo mais amedrontado, que ataca pra se defender. Ela desliza seu corpo anelado pela Cruz, ciosa de encontrar um ponto no qual se possa preparar para se tornar outro ser, para modificar seu rosto, seu corpo, sua existência. Meu coração são meninos que brincam com os pés dentro do lago. Fazendo cara e coroa com a Estrela de Davi, a verem o seu movimento hiperbólico cortando o céu azul. E ela escapa-lhes às mãos, e cai no fundo do lago, onde ninguém mais a pode achar. E meu coração sai a correr sobre a água e a pular, deixando tudo isso pra depois, porque, pra meu cético coração, a única religião é o desconhecido amor sem fim.

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